Diploma vai aumentar a oferta de habitação, pela desburocratização. Mas implica riscos de segurança jurídica, avisam especialistas.
O simplex entrou em vigor no início deste ano e promete reformar e simplificar os licenciamentos urbanos em Portugal, depois de anos de reclamações por parte de promotores, mediadores e investidores imobiliários.
Tendo em vista colocar mais casas no mercado de forma rápida, e dar resposta à alta procura com habitação a preços acessíveis, este diploma traz várias vantagens, como o avanço de projetos imobiliários por deferimento tácito, novos casos de comunicação prévia (sem licença) ou ainda uma fácil reconversão de imóveis comerciais para habitação. Vários são também os especialistas que não têm dúvidas que o simplex – que contempla também a compra de casas sem exibir licenças – vai trazer mais celeridade dos processos urbanísticos e ainda menores custos. Mas também alertam para os “riscos significativos”, em especial ao nível da segurança jurídica.
O diploma que procede à reforma e simplificação dos licenciamentos no âmbito do urbanismo, ordenamento do território e indústria foi publicado em Diário da República no passado dia 8 de janeiro. E traz várias novidades para a fileira da construção e do imobiliário, bem como para as famílias e investidores que estão a pensar comprar ou vender casa. Em concreto, o Decreto-Lei n.º 10/2024, vem “eliminar licenças, autorizações e exigências administrativas desproporcionadas que criem custos de contexto”, numa lógica de “licenciamento zero”. A grande maioria das 26 medidas do simplex entra em vigor no próximo dia 4 de março, mas algumas já têm efeitos desde 1 de janeiro de 2024.
Os vários especialistas de mercado ouvidos apontam claras vantagens neste novo diploma do Governo socialista de António Costa (agora em gestão) que vem agilizar e simplificar os licenciamentos urbanísticos em Portugal, mas também apontam riscos vários, não só a nível geral, como também em cada uma das medidas apresentadas.
Menos burocracia traz mais casas ao mercado
“O simplex urbanístico vem, essencialmente, agilizar e flexibilizar os procedimentos de controlo prévio urbanístico e de ordenamento do território, designadamente, eliminando licenças, autorizações e outros procedimentos. Esta agilização e flexibilização dos procedimentos tenderá a reduzir os encargos de promotores e investidores no ramo imobiliário e acelerar os investimentos neste setor”, apontam Ana Rodrigues de Almeida, sócia contratada da Abreu Advogados e Tiago Salgueiro Mendes, associado sénior da Abreu Advogados, que esperam que, com esta nova legislação, haja um “aumento da oferta de habitação no mercado fruto da redução das barreiras burocráticas inerentes aos procedimentos de controlo prévio urbanístico e de ordenamento do território”.
Para Nuno Pereira da Cruz, managing partner, e sócio do departamento de urbanismo, construção e imobiliário da CRS Advogados, as alterações introduzidas pelo simplex “são significativas, nomeadamente ao nível do Regime Jurídico de Urbanização e Edificação (RJUE), do Regulamento Geral das Edificações Urbanas (RGEU) e da simplificação da compra e venda de imóveis. E são bem-vindas, pois visam alcançar uma maior simplificação da atividade administrativa através da eliminação de licenças, autorizações e atos administrativos, de forma a criar uma maior dinâmica no mercado e consequentemente aumentar a oferta de habitação”.
“A maior vantagem será – se se mostrar eficaz – a desburocratização dos procedimentos administrativos e, por essa via, a redução dos tempos de resposta e das complexidades administrativas”, refere Catarina Avelar, advogada Sénior na Belzuz Abogados, dando também nota positiva à “maior uniformização de procedimentos pelos vários municípios do país, o que até hoje não acontecia”. Também Clélia Brás, sócia e coordenadora de imobiliário da PRA – Raposo, Sá Miranda & Associados, destaca que a desburocratização dos licenciamentos vai “facilitar e acelerar o desenvolvimento de projetos imobiliários, tornando Portugal mais atrativo para investidores, tanto nacionais como internacionais”.
Além de simplificar procedimentos, este simplex vem também eliminar várias etapas do licenciamento urbano, havendo, por exemplo, “mais situações em que não é necessário o licenciamento da construção, mas sim apenas comunicação prévia ou mesmo isenção ou dispensa de controlo prévio camarário”, destacam Neuza Pereira de Campos, sócia responsável pelo departamento de Imobiliário da SRS Legal e Alexandre Roque, sócio da SRS Legal especializado em Urbanismo e Ordenamento do Território.
“Este conjunto de medidas reflete um esforço significativo para modernizar e otimizar o setor imobiliário e de construção em Portugal”, sublinha a coordenadora de imobiliário da PRA. E deverá trazer “vantagens imediatas”, nomeadamente uma “maior celeridade no desenvolvimento das operações urbanísticas e redução de custos, em virtude da menor carga burocrática”, referem os advogados da SRS Legal. Já André Gomes Dias, advogado na Lamares, Capela & Associados, acredita que os efeitos das alterações “profundas e positivas” do simplex no mercado da habitação só vão ser sentidos a prazo.
Simplex traz riscos ao nível da segurança jurídica
Embora os especialistas apontem várias vantagens da simplificação dos licenciamentos agora promovida pelo simplex, admitem que também há riscos vários a ter em atenção, especialmente ao nível da segurança jurídica. “A simplificação de procedimentos acarreta sempre riscos na sua implementação, nomeadamente dúvidas sobre que títulos urbanísticos um determinado imóvel dispõe, criando uma maior exigência junto dos agentes económicos que atuam no mercado imobiliário”, resumem Ana Rodrigues de Almeida e Tiago Salgueiro Mendes, da Abreu Advogados.
Para os especialistas da SRS Legal, este diploma tem “riscos claros e significativos, em especial ao nível da segurança jurídica. O facto de serem dispensadas as licenças e existir deferimento tácito não significa que os projetos não tenham de cumprir todas as regras legais, nomeadamente os planos de ordenamento do território. Aumenta o risco não só para os adquirentes dos imóveis, mas também para os promotores, que, por exemplo, poderão ver as obras embargadas por não serem cumpridas aquelas regras”, admitem os advogados.
O deferimento tácito e a ausência de um código da edificação, aliados à carência de técnicos qualificados pode levar a um “aumento de litigância decorrente de eventuais futuras situações em que, após as transações, venham a ser invocadas pelo município ou pelo Ministério Público ou detetadas pelo adquirente ilegalidades e/ou desconformidades técnicas, que serão sobretudo da exclusiva responsabilidade do promotor e das equipas técnicas por si contratadas”, avisa a equipa de imobiliário, turismo e urbanismo da Sérvulo & Associados, que admite que, em última análise, “essa responsabilidade terá de ser efetivada via judicial, sabendo-se de antemão que, atentos os tempos da justiça, a resolução de tais situações não será, a maior parte das vezes, atempada”.
Por exemplo, “a interpretação dos conceitos indeterminados, coloca os técnicos responsáveis a assumir entendimentos que podem não ser secundados pelos municípios. Nestes casos, os técnicos ficam numa situação fragilizada e os deferimentos tácitos podem ser declarados nulos. A posição do Ministério Público nestes casos ainda não é clara, mas sabemos que a proposição de uma ação de declaração de nulidade por parte daquele é suficiente para paralisar uma obra no imediato. Existem várias obras paralisadas há anos sem fim, por causa da morosidade de justiça. O risco é que venham a existir muitas mais”, conclui a equipa da Sérvulo.
Portanto, a introdução do simplex urbanístico terá o poder de dinamizar o setor imobiliário em Portugal, colocando mais casas no mercado. Mas também há riscos em cada medida que precisam de ser devidamente a acautelados para garantir que os benefícios sejam alcançados sem comprometer a qualidade urbanística e ambiental. Uma forma de mitigar estes riscos passaria por implementar o código da construção (que está numa fase inicial de desenvolvimento, com conclusão prevista para 2026) e ainda por apostar na formação dos especialistas urbanísticos.
Quais as vantagens e desvantagens de cada medida do simplex urbanístico?
Apesar de os especialistas considerarem que, de forma geral, o simplex dos licenciamentos urbanísticos vai agilizar e uniformizar procedimentos, ajudando a colocar mais casas no mercado, a verdade é que apontam vantagens e riscos concretos para cada medida:
-Novos prazos para as autarquias decidirem sobre os pedidos de licenciamentos urbanísticos: esta medida “cria uma maior previsibilidade nos procedimentos urbanísticos, impedindo que nas mesmas matérias existam regras e procedimentos diferentes”, destacam desde a Abreu Advogados. Por outro lado, “a tendencial uniformização de regulamentos municipais tem a vantagem de eliminar exigências muitas vezes desnecessárias, diminuindo custos de contexto. A desvantagem poderá estar numa excessiva padronização do território, em prejuízo das características próprias de cada um”, referem os especialistas da Sérvulo;
-Novo deferimento tácito para licenciamentos: agora se as câmaras não se pronunciarem, o projeto imobiliário avança por deferimento tácito. Para Clélia Brás, da PRA, a introdução do deferimento tácito “pode acelerar o desenvolvimento, mas também aumenta o risco de projetos avançarem sem a devida revisão ou aprovação”, um cenário que traz “preocupações sobre a possível não conformidade com as normas urbanísticas e a qualidade das construções”. Já para os especialistas da Sérvulo, o problema é que “a lei trata as câmaras municipais de forma idêntica, quando nem todas têm a mesma capacidade de meios, nem gerem territórios com as mesmas características ou necessidades. Em áreas ambientalmente sensíveis ou com conceitos indeterminados, o deferimento tácito pode ser arriscado e colocar em causa o financiamento ou a sua execução no local”, avisam.
-Novos casos isenção ou dispensa de controlo prévio pelos municípios (para obras que aumentem número de pisos sem aumento de cércea ou fachada ou obras interiores com responsabilização dos técnicos, por exemplo): ajuda a “desimpedir o expediente camarário”, dizem desde a Sérvulo, mas há “a desvantagem de existirem poucos técnicos com experiência ou formação nesses instrumentos”.
-Novos casos de comunicação prévia sem necessidade de licença (quando exista um plano de pormenor ou uma unidade de execução, que inclua desenho urbano e a programação de obras de urbanização: “Isto terá vantagens numa maior rapidez de execução dos planos e de transações imobiliárias, mas desvantagens potenciais na sua articulação com o planeamento prévio”, destaca a Sérvulo. Além disso, os especialistas da SRS Legal antecipam que, com este aumento de casos apenas sujeitos a comunicação prévia sem a possibilidade de optar pelo licenciamento, haverá um aumento de pedidos de informação prévia (PIP), “para existir maior segurança”;
-Maior responsabilização dos técnicos nos licenciamentos urbanísticos: pode trazer vantagens ao nível da agilização e simplificação dos procedimentos. Mas “os técnicos partem de uma situação de desvantagem, na medida em que a legislação urbanística é excessiva em número, em complexidade e em conceitos indeterminados”, refere a equipa de imobiliário da Sérvulo, referindo ainda que “existem poucos cursos de preparação para esta realidade e, na prática, há espaço para a responsabilização não ser efetiva.
O código da edificação viabilizaria uma responsabilização mais clara dos técnicos”.
-Compra de casas não exige apresentação de licença de utilização ou ficha técnica da habitação: tal como os mesmos especialistas detalharam, esta medida traz a vantagem de colocar mais casas no mercado (nomeadamente as que têm falta de licenciamento), vem simplificar a comercialização de imóveis e traz menores custos administrativos. Mas as famílias e investidores ficam desprotegidos, facilita a venda de casas com construções ilegais, abre a porta a que haja mais obras sem respeito pelos projetos aprovados e há ainda o risco de haver aumento de litigância pela venda de casas sem licença. Além disso, quem comprar uma casa sem licença pode ficar impedido de aceder a crédito habitação, porque os bancos podem continuar a exigir esta documentação para ter garantias de crédito;
-Eliminação da autorização de utilização quando obras estão sujeitas a controlo prévio (sendo substituída pela entrega de documentos relativos ao projeto sem possibilidade de indeferimento): para André Gomes Dias, da Lamares, Capela & Associados, esta medida vai descomplicar “o caso das novas construções, onde há situações em que as partes aguardavam vários meses pela emissão das licenças de utilização dos imóveis”;
-Introdução da Plataforma Eletrónica dos Procedimentos Urbanísticos até 2026: “Promove a padronização e transparência nos processos de licenciamento, contribuindo para a eficiência administrativa”, aponta a responsável pela PRA. Mas alerta que “a transição para este novo sistema eletrónico apresenta desafios, exigindo dos municípios e dos utilizadores uma adaptação às novas tecnologias e processos”, uma mudança que “pode enfrentar resistências e dificuldades operacionais iniciais”;
-Reconversão de imóveis comerciais para habitação facilitada (sem deliberação do condomínio): esta medida “impulsiona o desenvolvimento habitacional e industrial, sendo fundamental para o crescimento económico do país”, conclui Clélia Brás. No entanto, “é essencial que essa reclassificação seja feita com uma consideração cuidadosa dos impactos ambientais e da necessidade de proteger áreas sensíveis. A gestão equilibrada entre o desenvolvimento e a sustentabilidade torna-se crucial, assim como a conciliação das novas regras com os planos de gestão territorial e ordenamento local existentes”, destaca ainda a especialista.
-Cedência de áreas destinadas a habitação pública, construção a custo controlados e arrendamento acessível: “Teoricamente, poderia ser vantajoso para resolver a crise da habitação, mas implica desvantagens relacionadas com a tradicional falta de eficácia de algum setor público, com alguma falta de clareza no que toca aos parâmetros urbanísticos e à articulação com os planos municipais vigentes, num quadro da viabilidade económica”, referem desde a Sérvulo & Associados.
-Eliminação do alvará de licença de construção (sendo substituído pelo recibo do pagamento das taxas devidas).